Laurita Vaz, presidente do STJ
A rebelião ocorrida no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus – onde 56 presos foram mortos durante uma briga entre facções criminosas –, parece ter gerado a mesma sensação em todos: trata-se de uma tragédia anunciada.
Noticia a imprensa que as péssimas condições em que os presos eram mantidos no Compaj já haviam sido objeto de alerta desde muito antes da rebelião, bem como a circunstância de que as autoridades não tinham o menor controle sobre o que se passava ali dentro. Tal situação se repete como regra no sistema penitenciário brasileiro, cuja população internada passa de 600 mil pessoas (622.202, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, do Ministério da Justiça, relativo a dezembro de 2014).
É deprimente constatar que, conforme apontado em janeiro do ano passado pelo Informativo Rede Justiça Criminal, a população carcerária brasileira dobrou em uma década, sem que isso tenha trazido redução nos índices de violência.
De todo esse enorme contingente de presos, 40% estão encarcerados em situação provisória. Se é inaceitável o tratamento degradante dispensado aos condenados, que se dirá de quem nem sequer foi julgado?
Em 2010, em uma palestra a juízes de direito das comarcas do entorno do Distrito Federal, tive a oportunidade de abordar o tormentoso aspecto da decisão relativa à decretação da custódia cautelar:
“O magistrado, ao analisar a necessidade de decretação ou de manutenção de uma prisão cautelar, também leva em consideração o tamanho do mal ao qual será o agente submetido quando tiver que ser custodiado, ainda que provisoriamente, no sistema prisional deste país, que, em uma só palavra, representa algo bem próximo do caos.”
“A perversidade e as péssimas condições do cárcere que oferece o sistema prisional recomendam, com mais vigor, a necessidade de adotar a prisão provisória como medida extrema e excepcional, ou seja, somente quando, definitiva e concretamente, sobressair a necessidade da segregação cautelar, nos termos autorizados pela legislação penal.”
Passados seis anos daquela palestra, o massacre de Manaus revela que o Brasil continua a falhar grosseiramente em sua obrigação constitucional de assegurar condições dignas de cumprimento de pena, capazes de oferecer ao detento uma oportunidade real de ressocialização.
Não se pode deixar de reconhecer algumas iniciativas louváveis voltadas para a superação das deficiências de nosso sistema prisional. Do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, vale destacar o projeto Cidadania nos Presídios, que tem entre seus objetivos capacitar juízes e servidores, estruturar as varas de execução penal e implementar processos de trabalho para garantir celeridade no julgamento de incidentes da execução, como pedidos de indulto e comutação de pena. Outra importante frente de atuação do projeto é a criação de rotinas facilitadoras da reinserção social do apenado.
Também são promissores os projetos (alguns já implementados) de criação de centros de pacificação social, visando promover a solução de conflitos por meio da conciliação, com a participação da comunidade, bem como fiscalizar o tratamento dos presos e aperfeiçoar o atendimento da Justiça criminal.
Embora a administração do sistema penitenciário seja atribuição do Poder Executivo, cuja responsabilidade de modo algum pode ser minimizada, a situação de decadência dos presídios brasileiros comporta e exige a colaboração de todos – poderes constituídos e sociedade civil.
No entanto, tais iniciativas, ainda que indiscutivelmente importantes e necessárias, não resolvem o problema maior, que é a falta de estrutura, de planejamento e de fiscalização dos presídios.
Os números do Infopen, segundo os quais a taxa de ocupação dos presídios chegava a 167% em dezembro de 2014, revelam a dramaticidade da situação.
Como garantir respeito à integridade física e moral do preso (CF, art. 5º, XLIX) ou evitar que tenha tratamento desumano e degradante (CF, art. 5º, III) nesse quadro de superlotação? Como esperar que, em tais condições desumanas e degradantes, por si sós atentatórias à dignidade do detento sob todos os aspectos, seja a prisão capaz de “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado”, como prevê o artigo 1º da Lei de Execução Penal?
Em meio a esse caos, rebeliões e mortes acabam se tornando rotina de um sistema que amontoa 622.202 “anjos caídos”, como diria o dramaturgo Plínio Marcos, em celas onde mal caberiam 371.884.
A situação sugere, portanto, ações imediatas em busca do saneamento das inúmeras falhas do sistema prisional brasileiro, que refletem diretamente na grave crise da segurança pública do país. O Poder Executivo, estadual e federal, precisa encontrar meios de equacionar o problema, que não é isolado. Há outras tantas ações atrasadas em áreas tão importantes quanto a segurança pública, o que acaba tornando a questão mais complicada.
Source: STJ